A prefeita de Ibicaraí enfrenta sanção que não existe mais no ordenamento jurídico brasileiro, apesar do Judiciário já ter consolidado a aplicação da nova legislação — o trânsito em julgado cria obstáculos, mas não impossibilidades
Por Jerbson Moraes
Advogado, Mestrando em Direito e ex-presidente da Câmara Municipal de Ilhéus (BA)
A prefeita de Ibicaraí (BA), Monalisa Gonçalves Tavares, teve seus direitos políticos suspensos até 2029 por uma condenação que, paradoxalmente, não poderia mais ser aplicada. O caso expõe uma distorção grave e sistêmica: autoridades públicas estão sendo punidas com sanções que o Congresso Nacional já eliminou do ordenamento jurídico — enquanto o próprio Judiciário reconhece e aplica as mudanças legislativas em casos similares.
Em outubro de 2021, a Lei nº 14.230 promoveu a maior reforma da Lei de Improbidade Administrativa em três décadas. Entre as principais mudanças, o Congresso revogou expressamente a possibilidade de suspender direitos políticos por violações genéricas aos princípios administrativos — exatamente a situação da prefeita baiana.
A decisão legislativa não foi acidental. Deputados e senadores reconheceram que essa punição havia se tornado desproporcional e estava sendo usada para perseguições políticas, não para moralizar a administração pública.
Constituição ignorada seletivamente
O artigo 5º da Constituição Federal é cristalino: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” Esse princípio se aplica também às sanções administrativas e torna obrigatória a aplicação da lei mais benéfica, mesmo para condenações já transitadas em julgado.
O próprio Tribunal Regional Federal da 1ª Região já consolidou esse entendimento. Em decisão de dezembro de 2024 (processo 0005674-83.2013.4.01.3703), a desembargadora Maria do Carmo Cardoso foi categórica ao estabelecer que “as questões de natureza material na nova lei de improbidade têm aplicação imediata aos feitos em andamento” e reconheceu expressamente o “princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica.”
A mesma magistrada determinou que “tornou-se descabida qualquer pretensão de enquadramento de ato de improbidade com base em conduta culposa” e que condutas antes punidas “deixaram de ser típicas” com a vigência da Lei 14.230.
No caso de Ibicaraí, mantém-se uma sanção juridicamente inexistente desde 2021. É como condenar alguém por um crime que foi descriminalizado — constitui erro grosseiro que invalida toda a decisão.
O Judiciário aplicando a lei corretamente
A decisão do TRF-1 demonstra como a lei mudou substancialmente mesmo para condutas aparentemente similares. Antes da reforma, o artigo 11, VI, da Lei de Improbidade punia genericamente quem deixasse de “prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo.”
Agora, a nova redação é muito mais específica: só configura improbidade se o agente deixar de prestar contas “desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades” — um elemento doloso específico que deve ser provado e que simplesmente não existia na legislação anterior.
O Supremo Tribunal Federal também reafirmou essa regra em diversos julgamentos. No caso do mensalão (AP 470), a Corte aplicou lei posterior mais favorável para reduzir penas de condenados. “A aplicação da lei mais benéfica constitui direito fundamental do acusado”, decidiu o tribunal.
Efeito dominó da contradição
As consequências práticas são devastadoras. A inclusão da prefeita no cadastro nacional de condenados por improbidade do Conselho Nacional de Justiça já bloqueia repasses federais, impede contratos públicos e paralisa convênios essenciais para o município.
Fornecedores hesitam em negociar com a prefeitura. Bancos públicos suspendem operações de crédito. O próprio FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) pode cortar recursos para escolas municipais — tudo baseado em uma decisão juridicamente inválida.
A contradição é gritante: enquanto o TRF-1 reconhece em suas decisões mais recentes que condutas similares “deixaram de ser típicas” com a nova lei, o sistema administrativo continua executando sanções como se a Lei 14.230 nunca tivesse existido.
Precedente judicial vs. arbitrariedade administrativa
O caso simboliza uma escolha fundamental do sistema jurídico brasileiro: aplicar a Constituição e as leis vigentes conforme já faz o próprio Judiciário, ou perpetuar arbitrariedades baseadas em normas revogadas.
A jurisprudência do TRF-1 expõe a irracionalidade do sistema. Em decisão ainda mais recente (processo 1000208-67.2017.4.01.3310, de junho de 2024), o desembargador Marcos Augusto de Sousa reconheceu que “com a revogação do art. 11, I, da LIA, tornou-se atípica a conduta imputada”, aplicando diretamente o “princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu”.
Duas decisões do mesmo tribunal, relatores diferentes, conclusão idêntica: a Lei 14.230 deve ser aplicada imediatamente, com retroatividade benéfica, para condutas que deixaram de ser típicas. Enquanto isso, o sistema administrativo age como se essa jurisprudência consolidada não existisse.
Defesa constitucional com precedente favorável
A prefeita Monalisa protocolou ação rescisória no TRF-1 para corrigir o erro. O trânsito em julgado da condenação cria obstáculos — mas não impossibilidades. A tese da defesa se ancora na distinção entre aplicação de “lei mais benéfica” e correção de erro material.
A jurisprudência do próprio TRF-1 oferece respaldo. A desembargadora Maria do Carmo Cardoso estabeleceu precedente ao aplicar os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, determinando que as alterações da Lei 14.230 “têm aplicação imediata aos feitos em andamento.”
A estratégia tem viabilidade jurídica e pode, inclusive, criar precedente nacional sobre o alcance da nova LIA frente ao trânsito em julgado.
Entre a coerência legal e o colapso institucional
Se autoridades públicas continuarem executando punições juridicamente extintas, a responsabilidade institucional recairá sobre os próprios agentes que ignoram a jurisprudência vigente. O TRF-1 já unificou entendimento entre suas turmas. Ignorar isso é violar frontalmente a Constituição.
Não há espaço para interpretações dúbias quando a própria corte responsável pela execução da pena já declarou a atipicidade da conduta. A coerência institucional é um imperativo jurídico e moral.
O Brasil não pode aceitar que sanções extintas continuem produzindo efeitos apenas por apego formal ao trânsito em julgado. A função do Direito não é eternizar injustiças, mas corrigi-las.
Referências jurídicas:
TRF1 – AC 0005674-83.2013.4.01.3703 – Des. Maria do Carmo Cardoso – 3ª Turma – Dez/2024
TRF1 – AC 1000208-67.2017.4.01.3310 – Des. Marcos Augusto de Sousa – 4ª Turma – Jun/2024
CF/88 – Art. 5º, incisos XXXIX e XL
Lei nº 14.230/2021 – Reforma da Lei de Improbidade Administrativa
STF – Tema 1199 da Repercussão Geral
Jerbson Moraes
Advogado, Mestrando em Direito e ex-presidente da Câmara Municipal de Ilhéus (BA)
A prefeita de Ibicaraí (BA), Monalisa Gonçalves Tavares, teve seus direitos políticos suspensos até 2029 por uma condenação que, paradoxalmente, não poderia mais ser aplicada. O caso expõe uma distorção grave e sistêmica: autoridades públicas estão sendo punidas com sanções que o Congresso Nacional já eliminou do ordenamento jurídico — enquanto o próprio Judiciário reconhece e aplica as mudanças legislativas em casos similares.
Em outubro de 2021, a Lei nº 14.230 promoveu a maior reforma da Lei de Improbidade Administrativa em três décadas. Entre as principais mudanças, o Congresso revogou expressamente a possibilidade de suspender direitos políticos por violações genéricas aos princípios administrativos — exatamente a situação da prefeita baiana.
A decisão legislativa não foi acidental. Deputados e senadores reconheceram que essa punição havia se tornado desproporcional e estava sendo usada para perseguições políticas, não para moralizar a administração pública.
Constituição ignorada seletivamente
O artigo 5º da Constituição Federal é cristalino: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.” Esse princípio se aplica também às sanções administrativas e torna obrigatória a aplicação da lei mais benéfica, mesmo para condenações já transitadas em julgado.
O próprio Tribunal Regional Federal da 1ª Região já consolidou esse entendimento. Em decisão de dezembro de 2024 (processo 0005674-83.2013.4.01.3703), a desembargadora Maria do Carmo Cardoso foi categórica ao estabelecer que “as questões de natureza material na nova lei de improbidade têm aplicação imediata aos feitos em andamento” e reconheceu expressamente o “princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica.”
A mesma magistrada determinou que “tornou-se descabida qualquer pretensão de enquadramento de ato de improbidade com base em conduta culposa” e que condutas antes punidas “deixaram de ser típicas” com a vigência da Lei 14.230.
No caso de Ibicaraí, mantém-se uma sanção juridicamente inexistente desde 2021. É como condenar alguém por um crime que foi descriminalizado — constitui erro grosseiro que invalida toda a decisão.
O Judiciário aplicando a lei corretamente
A decisão do TRF-1 demonstra como a lei mudou substancialmente mesmo para condutas aparentemente similares. Antes da reforma, o artigo 11, VI, da Lei de Improbidade punia genericamente quem deixasse de “prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo.”
Agora, a nova redação é muito mais específica: só configura improbidade se o agente deixar de prestar contas “desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades” — um elemento doloso específico que deve ser provado e que simplesmente não existia na legislação anterior.
O Supremo Tribunal Federal também reafirmou essa regra em diversos julgamentos. No caso do mensalão (AP 470), a Corte aplicou lei posterior mais favorável para reduzir penas de condenados. “A aplicação da lei mais benéfica constitui direito fundamental do acusado”, decidiu o tribunal.
Efeito dominó da contradição
As consequências práticas são devastadoras. A inclusão da prefeita no cadastro nacional de condenados por improbidade do Conselho Nacional de Justiça já bloqueia repasses federais, impede contratos públicos e paralisa convênios essenciais para o município.
Fornecedores hesitam em negociar com a prefeitura. Bancos públicos suspendem operações de crédito. O próprio FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) pode cortar recursos para escolas municipais — tudo baseado em uma decisão juridicamente inválida.
A contradição é gritante: enquanto o TRF-1 reconhece em suas decisões mais recentes que condutas similares “deixaram de ser típicas” com a nova lei, o sistema administrativo continua executando sanções como se a Lei 14.230 nunca tivesse existido.
Precedente judicial vs. arbitrariedade administrativa
O caso simboliza uma escolha fundamental do sistema jurídico brasileiro: aplicar a Constituição e as leis vigentes conforme já faz o próprio Judiciário, ou perpetuar arbitrariedades baseadas em normas revogadas.
A jurisprudência do TRF-1 expõe a irracionalidade do sistema. Em decisão ainda mais recente (processo 1000208-67.2017.4.01.3310, de junho de 2024), o desembargador Marcos Augusto de Sousa reconheceu que “com a revogação do art. 11, I, da LIA, tornou-se atípica a conduta imputada”, aplicando diretamente o “princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu”.
Duas decisões do mesmo tribunal, relatores diferentes, conclusão idêntica: a Lei 14.230 deve ser aplicada imediatamente, com retroatividade benéfica, para condutas que deixaram de ser típicas. Enquanto isso, o sistema administrativo age como se essa jurisprudência consolidada não existisse.
Defesa constitucional com precedente favorável
A prefeita Monalisa protocolou ação rescisória no TRF-1 para corrigir o erro. O trânsito em julgado da condenação cria obstáculos — mas não impossibilidades. A tese da defesa se ancora na distinção entre aplicação de “lei mais benéfica” e correção de erro material.
A jurisprudência do próprio TRF-1 oferece respaldo. A desembargadora Maria do Carmo Cardoso estabeleceu precedente ao aplicar os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, determinando que as alterações da Lei 14.230 “têm aplicação imediata aos feitos em andamento.”
A estratégia tem viabilidade jurídica e pode, inclusive, criar precedente nacional sobre o alcance da nova LIA frente ao trânsito em julgado.
Entre a coerência legal e o colapso institucional
Se autoridades públicas continuarem executando punições juridicamente extintas, a responsabilidade institucional recairá sobre os próprios agentes que ignoram a jurisprudência vigente. O TRF-1 já unificou entendimento entre suas turmas. Ignorar isso é violar frontalmente a Constituição.
Não há espaço para interpretações dúbias quando a própria corte responsável pela execução da pena já declarou a atipicidade da conduta. A coerência institucional é um imperativo jurídico e moral.
O Brasil não pode aceitar que sanções extintas continuem produzindo efeitos apenas por apego formal ao trânsito em julgado. A função do Direito não é eternizar injustiças, mas corrigi-las.
Referências jurídicas:
TRF1 – AC 0005674-83.2013.4.01.3703 – Des. Maria do Carmo Cardoso – 3ª Turma – Dez/2024
TRF1 – AC 1000208-67.2017.4.01.3310 – Des. Marcos Augusto de Sousa – 4ª Turma – Jun/2024
CF/88 – Art. 5º, incisos XXXIX e XL
Lei nº 14.230/2021 – Reforma da Lei de Improbidade Administrativa
STF – Tema 1199 da Repercussão Geral
Jerbson Moraes
Advogado, Mestrando em Direito e ex-presidente da Câmara Municipal de Ilhéus (BA)