Por Dr. Jerbson Moraes
Advogado, Mestrando em Direito pela UNI7 e UFBA
Resumo Executivo
O presente artigo analisa criticamente o Projeto de Lei Tributária apresentado pelo município de Ilhéus, Bahia, em 30 de abril de 2025, identificando violações a princípios constitucionais fundamentais, como o da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e do devido processo legal. A análise demonstra que a legislação proposta, sob o pretexto de modernização administrativa, institui regime tributário confiscatório, altera inconstitucionalmente a competência territorial do ISS e cria sistema punitivo desproporcional, representando grave risco à segurança jurídica e ao desenvolvimento econômico municipal.
O Projeto de Lei apresentado pelo Prefeito Valderico Luiz dos Reis Júnior em 30 de abril de 2025, que altera substancialmente o Código Tributário de Ilhéus, representa um preocupante retrocesso no direito tributário municipal brasileiro. Sob o verniz da “modernização administrativa”, esconde-se uma legislação de perfil claramente confiscatório que atenta contra princípios constitucionais basilares e revela uma visão predatória da relação entre Estado e contribuinte.
A Inconstitucionalidade Manifesta da Mudança de Competência Territorial
O aspecto mais grave do projeto reside na alteração dos critérios de competência territorial para cobrança do ISS, estabelecida no art. 101, incisos XXII e XXIII. Ao determinar que o imposto será devido ao município do domicílio do tomador dos serviços (e não do prestador), para administradoras de cartão e outros serviços específicos, a legislação municipal rompe frontalmente com o sistema constitucional de repartição de competências tributárias.
O artigo 156, III, da Constituição Federal, regulamentado pela Lei Complementar 116/2003, estabelece inequivocamente que o ISS é devido no local da prestação do serviço. Esta não é uma regra meramente técnica, mas um princípio federativo fundamental que impede a guerra fiscal entre municípios e preserva a segurança jurídica das relações tributárias.
A doutrina tributária, representada por autores como Roque Antonio Carrazza em seu “Curso de Direito Constitucional Tributário”, é categórica em afirmar que a competência tributária municipal para ISS deve observar rigorosamente o critério territorial constitucional, sendo vedada qualquer extraterritorialidade da legislação municipal.
O Supremo Tribunal Federal recentemente consolidou este entendimento de forma definitiva. No julgamento das ADIs 5.835, 5.862 e da ADPF 499, concluído em junho de 2023, a Corte Suprema declarou inconstitucionais exatamente os dispositivos que Ilhéus pretende reproduzir. “As ações questionavam a validade de dispositivos da Lei Complementar (LC) 116/2003, alterados pela LC 157/2016, que determinavam que o ISS seria devido no município do tomador do serviço no caso dos planos de medicina em grupo ou individual, de administração de fundos e carteira de clientes, de administração de consórcios, de administração de cartão de crédito ou débito e de arrendamento mercantil (leasing)”.
A decisão do STF foi clara: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais dispositivos de lei complementar federal que deslocaram a competência para a cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS) do município do prestador do serviço para o do tomador”.
Ao tentar capturar receitas de serviços prestados em outros municípios, Ilhéus não apenas viola a Constituição, mas desafia frontalmente jurisprudência já consolidada do STF. Imagine-se o cenário em que todos os 5.570 municípios brasileiros adotassem critério semelhante – teríamos a atomização completa da competência tributária e a impossibilidade prática de cumprimento das obrigações pelos contribuintes.
O Regime Punitivo Desproporcional: Violação aos Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade
O projeto institui um sistema punitivo que destoa gravemente dos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade. A multa de R$ 10.000,00 para pessoas jurídicas e R$ 1.000,00 para pessoas físicas pelo simples não credenciamento no Domicílio Tributário Eletrônico (DT-e) revela uma desproporcionalidade chocante.
Para contextualizar: uma pessoa física de baixa renda que possua um pequeno imóvel em Ilhéus e desconheça a obrigação de credenciamento eletrônico será penalizada com multa equivalente a quase um salário mínimo. Trata-se de punição manifestamente excessiva para conduta que, em sua essência, constitui mero descumprimento de obrigação acessória.
Hugo de Brito Machado, em seu “Curso de Direito Tributário”, desenvolveu extensa doutrina sobre a necessidade de proporcionalidade entre as infrações e as penalidades tributárias, demonstrando que multas excessivas configuram verdadeiro confisco vedado pela Constituição.
Esta desproporção viola frontalmente o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF) e o princípio da vedação ao confisco (art. 150, IV, CF), configurando o que a doutrina tributária denomina de “tributação punitiva”.
As Presunções de Receita Omitida: Inversão Inconstitucional do Ônus da Prova
O artigo 113-A do projeto representa talvez a mais grave violação aos direitos fundamentais do contribuinte. Ao estabelecer 11 hipóteses de presunção de receita omitida e determinar que “caberá ao sujeito passivo o ônus da prova de desconstituição das presunções”, a legislação municipal inverte completamente o ônus probatório, violando princípios processuais fundamentais.
Esta inversão conflita com:
- O princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), aplicável também ao direito tributário sancionador
- O devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV, CF)
- A jurisprudência consolidada do STF que exige prova robusta da Administração para caracterizar omissão de receita
A doutrina tributária desenvolvida por Luciano Amaro em “Direito Tributário Brasileiro” é precisa ao demonstrar que o lançamento tributário deve fundar-se em elementos seguros que comprovem a ocorrência do fato gerador, sendo vedadas presunções vagas ou genéricas que não atendam ao requisito constitucional da legalidade estrita.
Particularmente grave é a presunção do inciso XI, que considera omissão de receita quando a “receita líquida for inferior ao custo dos serviços prestados”. Esta presunção ignora completamente a realidade econômica de empresas em dificuldades, startups em fase de investimento, ou simplesmente negócios sazonais, transformando situações econômicas legítimas em infrações tributárias.
A Expansão Abusiva da COSIP: Desvio de Finalidade Constitucional
A ampliação do objeto da COSIP para custear “sistemas de monitoramento para segurança” representa claro desvio de finalidade constitucional. O artigo 149-A da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional 39/2002, autoriza a cobrança da contribuição exclusivamente para custeio da iluminação pública.
A tentativa de expansão para atividades de segurança pública constitui:
- Violação ao princípio da finalidade específica das contribuições
- Bitributação indireta, pois segurança pública já é custeada por impostos gerais
- Burla à competência tributária, utilizando figura jurídica específica para fins diversos
Leandro Paulsen, em seu “Curso de Direito Tributário Completo”, desenvolve importante doutrina sobre o princípio da destinação vinculada das contribuições especiais, demonstrando que qualquer desvio de finalidade compromete sua constitucionalidade.
Além disso, os valores estabelecidos para imóveis sem energia elétrica (R$ 9,00 a R$ 54,00 anuais) incidem sobre contribuintes que, por definição, não se beneficiam do serviço de iluminação pública, violando frontalmente o princípio da retributividade que fundamenta as contribuições.
O Inadimplente Contumaz: Criminalização da Dificuldade Econômica
A criação da figura do “inadimplente contumaz” (art. 121-A) revela uma compreensão distorcida da relação tributária. Ao estabelecer regime especial punitivo para quem atrasar o ISS por apenas 4 meses consecutivos ou 6 alternados em 12 meses, a legislação:
- Criminaliza a dificuldade econômica de micro e pequenos empresários
- Ignora os ciclos econômicos naturais de muitas atividades
- Cria discriminação injustificada entre contribuintes em situação idêntica
Esta medida contraria a função social da empresa (art. 170, III, CF) e o princípio da livre concorrência (art. 170, IV, CF), na medida em que pode inviabilizar a continuidade de negócios em dificuldades temporárias.
A Digitalização Forçada: Exclusão e Violação da Isonomia
A obrigatoriedade do Domicílio Tributário Eletrônico, sem considerar as limitações de acesso digital da população, cria exclusão discriminatória. Em um país onde significativa parcela da população ainda carece de acesso adequado à internet e alfabetização digital, a imposição de relacionamento exclusivamente eletrônico com o fisco viola:
- O princípio da isonomia (art. 5º, caput, CF)
- O direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF)
- A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF)
Sacha Calmon Navarro Coêlho, em seu “Curso de Direito Tributário Brasileiro”, desenvolve importante crítica sobre a modernização dos processos administrativos que não pode servir de pretexto para violação de direitos fundamentais ou criação de barreiras injustificadas ao exercício da cidadania.
O Precedente Judicial Adverso: O Caso das ADIs 5.835, 5.862 e ADPF 499
O projeto de Ilhéus enfrenta um obstáculo jurisprudencial intransponível. Em junho de 2023, o STF julgou inconstitucionais exatamente as mesmas alterações que ora se pretende implementar localmente.
O relator, Ministro Alexandre de Moraes, foi enfático ao avaliar que “ainda existem inconsistências nas normas fiscais em relação à definição do domicílio do tomador de serviços em diversas áreas” e que “essas dúvidas geram conflitos fiscais e só poderão ser resolvidas com uma definição clara e exauriente dos aspectos da hipótese de incidência”.
A decisão reconheceu que “é necessária uma normatização que gere segurança jurídica, e não o contrário, sob pena de retrocesso em tema tão sensível ao pacto federativo”.
Considerações Político-Econômicas: O Custo do Voluntarismo Tributário
Sob a perspectiva político-econômica, o projeto revela uma gestão municipal que prioriza a arrecadação imediata em detrimento do desenvolvimento econômico sustentável. Ao criar ambiente tributário hostil e burocraticamente complexo, Ilhéus caminha na contramão das melhores práticas de desenvolvimento urbano.
Cidades que prosperam no cenário contemporâneo são aquelas que atraem investimentos através de ambiente regulatório claro, previsível e favorável aos negócios. O projeto em análise produz efeito diametralmente oposto: afugenta investimentos, penaliza empreendedores e cria insegurança jurídica.
A tentativa de capturar receitas de outros municípios através da mudança de competência territorial pode gerar retaliações e guerra fiscal reversa, prejudicando empresas ilheenses que prestam serviços em outras localidades.
O Falso Discurso da Modernização
O projeto se apresenta sob o discurso da “modernização administrativa”, mas modernização não se confunde com complexificação burocrática nem com endurecimento punitivo. Verdadeira modernização tributária envolve:
- Simplificação de procedimentos
- Transparência na aplicação dos recursos
- Incentivos ao cumprimento voluntário
- Respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes
O que se observa no projeto é precisamente o contrário: burocratização, punitivismo excessivo e desrespeito aos princípios constitucionais.
A Guerra Fiscal Disfarçada
Especialmente preocupante é a tentativa de Ilhéus de implementar localmente aquilo que o STF já declarou inconstitucional em âmbito nacional. Trata-se de clara guerra fiscal disfarçada sob o manto da legislação local.
Como demonstrou o próprio STF nas decisões citadas, tais alterações “potencializariam os conflitos de competência tributária, havendo dúvidas, em muitas situações, a respeito de quem seria o tomador de serviços” e “majora desproporcionalmente os custos operacionais dos prestadores de serviços, sem contrapartida de eficiência e aumento da arrecadação”.
Conclusão: Um Projeto Incompatível com o Estado Democrático de Direito
O projeto de lei tributário de Ilhéus representa um retrocesso civilizatório no direito tributário brasileiro. Sua aprovação significará não apenas prejuízo aos contribuintes locais, mas precedente perigoso para outros municípios brasileiros.
As violações constitucionais são tão numerosas e graves que a legislação, se aprovada, certamente será objeto de múltiplas ações de inconstitucionalidade. O precedente do STF nas ADIs 5.835, 5.862 e ADPF 499 torna praticamente certa a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos sobre competência territorial.
O custo social e econômico desta insegurança jurídica recairá sobre toda a coletividade ilheense. Contribuintes serão obrigados a recorrer ao Judiciário para fazer valer direitos constitucionais básicos, gerando custos e morosidade que prejudicam toda a sociedade.
É fundamental que a Câmara Municipal de Ilhéus, no exercício de sua função constitucional, rejeite integralmente este projeto, preservando assim os direitos fundamentais dos contribuintes e a supremacia da Constituição Federal.
A experiência recente do STF com legislação idêntica deveria servir de alerta: não se constrói desenvolvimento municipal através da rapinagem tributária disfarçada de modernização, mas sim pela parceria respeitosa entre Estado e sociedade, fundada na legalidade, na proporcionalidade e na justiça fiscal.
O desenvolvimento municipal sustentável exige segurança jurídica, previsibilidade normativa e respeito aos direitos fundamentais. O projeto ora analisado oferece precisamente o contrário: insegurança, imprevisibilidade e desrespeito constitucional.
A História mostrará se Ilhéus escolheu o caminho da modernização democrática ou da arrecadação autoritária. Os contribuintes ilheenses, e o próprio futuro da cidade, aguardam essa decisão fundamental.
Dr. Jerbson Moraes é advogado especialista em Processo Civil, mestrando em Direito pela UNI7 e pela UFBA. O presente artigo reflete sua análise técnico-jurídica do projeto em questão.